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Marketing procura positividade resgatando nostalgia
De “Chaves” a “Friends”, marcas revisitam antigos sucessos para criar conexões com consumidores atuais
Por Igor Ribeiro – editada por Mariana Collini
Num panorama de crise persistente, poucas coisas são tão necessárias quanto aliviar a ansiedade. E quando presente e futuro não parecem promissores, é natural se voltar para o passado. Não que naquela época (qualquer época, a que fizer mais sentido para sua memória afetiva) fosse necessariamente melhor. Mas a psicologia e a neurociência mostram como somos naturalmente propensos a minimizar os problemas de outrora e valorizar os “bons tempos” diante dos problemas atuais. É a tal da “nostalgia”: um escape rumo às lembranças de sensações mais agradáveis que tem se tornado uma poderosa ferramenta de marketing.
Em 2024, Samsung e Ypê recorreram a uma propriedade intelectual que faz sucesso há mais de 50 anos para chamar a atenção de consumidores: o seriado mexicano “Chaves”. Neste ano, a Nestlé relançou o Chocolate Surpresa, cujos cards colecionáveis marcaram a infância de milhões entre os anos 1980 e 1990. Neste mês, as pastilhas Valda lançaram uma edição especial de embalagens baseadas em “Friends”, a mais recente de uma série de homenagens à série que acabou de celebrar seu trigésimo aniversário. No último verão, a Kibon reeditou a promoção “Palito premiado”, que foi febre nas férias de muitas crianças e adolescentes de décadas passadas. A GM, como parte de sua campanha de 100 anos, pretende restaurar modelos clássicos como o Opala e o Chevette. A Cimed está patrocinando, na Globo, um resgate repaginado do “Caminhão do Faustão”, promoção que fez sucesso no fim dos anos 1980. Já a Estrela, cujos valores de marca se integram a emoções nostálgicas, reedita antigos brinquedos com novidades hightech e relança marcas clássicas de olho na geração “kidult”.
Volta e meia, a nostalgia retorna como um fenômeno cultural. Mas a complexidade atual parece reforçar ainda mais os atributos desse resgate afetivo. “A pandemia proporcionou esse boom numa série de mercados e adicionaria a isso essa tentativa mais recente de tentar diminuir um problema real da sociedade: o tempo de tela exagerado”, diz Marcos Bedendo, professor de branding e marketing da ESPM, destacando o esforço de pais em relação ao vício digital das novas gerações.
O excesso de estímulos por trás do fenômeno chamado “brain rot” (“derretimento cerebral”, em livre tradução) não só tem elevado o alerta na criação dos filhos, mas entre os próprios jovens que, espontaneamente, tentam estar mais alertas sobre consumo online. Numa pesquisa da Kids Corp de 2024, 86% deles disseram que reduziram o uso de redes sociais. O mesmo estudo destacou a “newstalgia” — a conexão da memória afetiva adaptada aos novos tempos — como uma tendência de marketing para 2025.
“Às vezes, o novo sabor de refrigerante não causa tanta comoção, mas se alguém resgatar o Crush, isso vai conectar com pessoas que vivenciaram aquela época. É um apelo muito parecido com o que acontece nas collabs”, Marcos Bedendo
Anemoia e kidults
Por definição, gerações têm mais diferenças comportamentais entre si do que o contrário. O que as aproxima, hoje, é a busca por espaços de conforto diante da ansiedade generalizada do mundo. “Junto ao confinamento da covid, temos um momento político e social que há muitos anos não era assim tão sensível”, diz Ricardo Wako, country manager da Kids Corp no Brasil. “Tem um clima de descontentamento e desconhecimento muito grande. E a efemeridade das coisas que vivemos — as redes sociais bombando, a sensação desesperadora de não saber o que está acontecendo, qual é a verdade — gera um vazio muito grande”, elabora. São aspectos que afetam a todos, desde os baby boomers até os alpha.
Os jovens se utilizam de conceitos como “retrô” ou “vintage”, uma vez que não há memória afetiva envolvida, mas o reconhecimento de certa qualidade ou de aspectos agradáveis de outras épocas. “São muitas as oportunidades e exemplos de empresas que vêm aplicando modernidade a produtos antigos para conseguir dialogar com esse público que vai absorver melhor um atributo vintage com tecnologia”, explica Wako. “Não é novidade, mas dado o contexto, tem mais sincronia hoje com a aflição das pessoas, com o comportamento social, que busca referências cada vez mais raras.”
Um estudo conduzido pela multinacional de pesquisa GWI, com mais de 6 mil respondentes, identificou que 37% das pessoas da geração Z se sentiam nostálgicos sobre os anos 1990; 21% sobre os anos 1980 e incríveis 12% em relação sobre os anos 1970.
Em 2012, o autor e neologista suíço-estadunidense John Koenig cunhou o termo “anemoia”, significando a nostalgia por um tempo no qual não se viveu. É uma sensação recorrente em muitas gerações além da Z — pelo menos de acordo com a GWI. Nesta tormenta de sentimentos, tendências e informações, ganham as marcas que conseguem despertar confiança, extravasar legitimidade e resgatar positividade.
Segundo Bedendo, é também o tipo de assunto inusitado que naturalmente gera interesse, viraliza e cria pauta — mesmo sendo um recurso muito utilizado, é difícil cansar de coisas nostálgicas. “Às vezes, o novo sabor de refrigerante não causa tanta comoção, mas se alguém resgatar o Crush, isso vai conectar com pessoas que vivenciaram aquela época. É um apelo muito parecido com o que acontece nas collabs, que são inusitadas, geram comentários e mídia espontânea”, pondera o professor da ESPM.
Outro fator de convergência é o “kidult”, um tipo de consumidor em alta que fica entre o colecionador e o fã. O conceito une “kid” (“garoto” em inglês) e “adulto”, definindo alguém já crescido e dono do próprio dinheiro que mantém grande interesse por coisas que marcaram sua infância — especialmente brinquedos, mas não só. É um fenômeno que também foi acelerado durante a pandemia: segundo uma pesquisa publicada em 2023 pelo NDP Group, houve um salto de consumo de brinquedos por adultos no intervalo entre 2020 e 2022 de 22% nos 12 maiores mercados da categoria, Brasil incluso. Informações da Toy Association, dos Estados Unidos, apontaram que em 2020 e 2021 a venda de brinquedos no país cresceu 37% e, embora uma parte disso representasse famílias confinadas procurando por distrações para crianças, 58% dos adultos americanos compraram pelo menos um brinquedo para si durante a pandemia.
“Com a natalidade caindo, as pessoas têm mais tempo para resgatar coisas do passado, hobbies e até certos fetiches. É muito parecido com o fenômeno de gente que coleciona sneakers ou adultos que jogam videogames”, explica Bedendo, da ESPM. É uma grande oportunidade tanto para empresas que querem fidelizar um público que cresce, como para aquelas que precisam conquistar novos consumidores.
Autenticidade e qualidade
Wako, da Kids Corp, destaca, porém, que não é só carinho e lembrança afetiva que retém o cliente, mas principalmente o discurso de verdade e legitimidade. “Essa busca por autenticidade deve se acirrar, porque o mundo não parece estar melhorando em termos de saúde mental”, diz.
“Gourmetizar marcas é como querer tudo ao mesmo tempo, deve-se ter cuidado. Se você quer se aproveitar de atributos de uma marca clássica, tem que entender o contexto histórico dela”, Ricardo Wako
Um case recente que buscou essa conexão mas desagradou parte dos consumidores foi o licenciamento de Bamba para produzir novos modelos inspirados na icônica marca. Ainda que a qualidade dos produtos, sua sustentabilidade e o apelo street wear tenham despertado o interesse de novos consumidores, muita gente que usou os tênis décadas atrás criticou o preço elevado das novas coleções, sendo que o Bamba original ficou popular justamente por ser muito acessível.
“Gourmetizar marcas é querer tudo ao mesmo tempo — é preciso ter cuidado”, diz Wako. “Se você quer se aproveitar de atributos de uma marca clássica, tem que entender o contexto histórico dela. Pois o consumidor pode preferir outro produto já conhecido pelo preço elevado e por certos atributos de confiança e qualidade.”
Há empresas, lembra o executivo, que conservam a noção de alto valor agregado e aspectos retrô que souberam sustentar a narrativa, baseadas no discurso de que “não se faz mais bons produtos como antigamente”. Ele cita Kitchen Aid e Land Rover. “São marcas que não costumam abrir mão de materiais mais caros para garantir durabilidade, o que também tem um olhar para a sustentabilidade. Os brinquedos da Fischer & Price, por exemplo, possuem conceitos que não mudam há décadas e vão ficar para seus netos”, diz.
Ao contrário da obsolescência programada, que parece dominar a lógica de mercado nestes tempos de inovações tecnológicas por minuto, assiste-se à vitória da “nostalgia programada”, com prazos de validade ou validação tão flexíveis quanto os conceitos atuais de velhice ou antiguidade.
Marketing procura positividade resgatando nostalgia
Foto: Reprodução