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Como a Antropologia decifra o consumo

Michel Alcoforado defende que marcas estudem a cultura do nosso tempo e o comportamento dos consumidores

Como a Antropologia decifra o consumo

Por Tatiana Bertoni

Michel Alcoforado diz que nunca esquecerá o dia em que decidiu estudar Antropologia. Quando tinha 15 anos, assistiu a uma entrevista na TV com o antropólogo Roberto DaMatta, que analisava o Brasil por meio de temas cotidianos, e achou esse caminho interessante. Na sua trajetória, formou-se em Sociologia, seguido de mestrado e doutorado na área. Contudo, descobriu que essa ciência poderia ser também uma ferramenta possível para entender o comportamento do consumidor, e por isso fez especialização em Marketing e Comunicação, unindo a pesquisa científica ao estudo da cultura e do consumo, encontrando sua verdadeira paixão. Além de dar aulas como professor convidado em instituições como Fundação Dom Cabral e FAAP, é comentarista de rádio, apresenta o podcast “É tudo culpa da cultura” e atua como consultor de grandes empresas. Ele está lançando, pela editora Telha, o livro De Tédio, Ninguém Morre: pistas para entender os nossos tempos.

Como a Antropologia pode ser utilizada para compreender o comportamento do consumidor?
O primeiro ponto a ser destacado é que o consumidor mente. Isso acontece não apenas porque tem interesses que o levam a dizer o que você quer ouvir, mas também porque, muitas vezes, ele não sabe o motivo de suas próprias ações. Não adianta perguntar a ele se prefere um celular com três ou quatro câmeras: ele não sabe responder, porque não compreendemos plenamente o que precisamos para ser felizes. Se soubéssemos, já seríamos felizes. O que determina os desejos e as necessidades dos consumidores é a cultura, um “chip” que é inserido em nós desde o nascimento e que molda nosso comportamento e forma de pensar, influenciando nossas escolhas, mesmo que não tenhamos consciência disso.

Como marcas que investem em estudos antropológicos conseguem transformar a relação com os consumidores?
Uma das vantagens de envelhecer é que você ganha maturidade suficiente para ter testemunhado casos em que o conhecimento que produzimos foi capaz de transformar empresas. Um exemplo simples é o de um banco digital que, em 2013, decidiu ter um aplicativo, mas achou que era aceitável cobrar por esse serviço. Para o consumidor, estava claro que tudo que era digital deveria ser gratuito e essa abordagem acabou dificultando a atração de clientes. A partir da nossa pesquisa, a empresa decidiu oferecer uma operação de TED gratuita por mês, algo que a maioria dos consumidores fazia naquela época, e isso era viável financeiramente. O resultado? O banco passou de 300 contas abertas por dia para 6 mil downloads diários em uma semana. O papel de um bom antropólogo é identificar as tensões culturais e, por meio de produtos e serviços, ajudar os consumidores a lidarem com elas da melhor maneira possível.

Qual é a relação entre sonho e consumo?
A grande inovação da sociedade do consumo no século 20 foi essa conexão. As pessoas começaram a desejar “sonhar acordadas”. Esse público, porém, tão focado em sonhar, começou a enxergar no consumo a possibilidade de realizar seus sonhos, utilizando crédito e débito. Ao comprar, estamos buscando materializar algo que só existe na nossa mente. O que é esse “algo”? É o sonho. Compro um celular novo porque acredito que minha vida será melhor com ele, adquiro uma casa nova na esperança de que meu casamento melhore, que meus filhos sejam mais felizes e que eu tenha uma vida mais saudável. Sabemos que nem sempre isso se concretiza, mas a crença de que o consumo pode transformar nossos sonhos em realidade é fundamental. E por que precisamos colar sonho com consumo? Porque o sonho, assim como a cultura, só existe na nossa cabeça. O sonho só é possível de se realizar comprando coisas, e é algo que eu sempre falo: tenta realizar um sonho sem comprar. Não dá!

No seu recente livro ‘De Tédio Ninguém Morre: pistas para entender nossos tempos’, você aborda como o consumo das classes menos privilegiadas provoca incômodo na classe média e nos mais ricos.

As elites brasileiras costumam criticar o comportamento de outras classes sociais como uma forma de distinção. No meu livro, defendo que todo consumo é consciente: quem compra, seja um tênis na Black Friday ou uma viagem de meditação na Chapada dos Veadeiros, o faz a partir de suas próprias necessidades. Essas pessoas pensam antes de comprar, não são vítimas do capitalismo. Contudo, geralmente achamos que nosso consumo é válido e necessário, enquanto o do outro é inadequado. Muitas vezes, esse “outro” é alguém mais pobre. A questão é que aqueles que hoje criticam o consumo de carne já se empanturraram em churrascarias até pouco tempo atrás. Os que reprovam a compra de uma geladeira na Black Friday também já gastaram em diversos modelos, de várias formas. A crítica ao consumo alheio não se preocupa realmente com o meio ambiente, mas com a distinção de classe. Estão preocupados se o filho da empregada está usando um sapato ou um tênis parecido com o deles. Eles estão preocupados com as fronteiras. Esse é o Brasil, né?
Michel Alcoforado

Uma das suas linhas de pesquisa é o estudo das gerações. Como as marcas se valem dessas informações para se reinventar com o objetivo de atender todas as idades?
As marcas sempre consideram o ciclo de vida do produto e por quanto tempo ele continua sendo desejado. É como se, a cada vez que um produto “morresse”, a marca desse um “choque” revitalizante – e isso pode ser feito por meio de rebranding ou lançando extensões de produtos. Por exemplo: um perfume pode ganhar uma nova embalagem para atrair o consumidor novamente e essas estratégias estão diretamente atreladas ao diálogo dessas marcas com o espírito do tempo, que é a capacidade de estarem fazendo sentido no mundo. Elas fazem isso em pleno contato com os consumidores. Basta olhar para um grupo de WhatsApp da família: minha mãe, aos 70 anos, manda figurinhas de bom dia, boa tarde e boa noite que eu nem sei de onde tira, enquanto minha afilhada de 15 anos se comunica com siglas que não entendo – descobri recentemente que o emoji de caveira significa “morrer de rir”. O principal atributo de uma marca, em 2024, é sua capacidade de gerar conversa entre seus consumidores e de se conectar a cada um desses grupos geracionais.

Foto: Tatiana Lafraia/Divulgação