#Trends: “Não podemos terceirizar o que nos torna humanos”, diz Camila Achutti
Fundadora da Mastertech fala sobre os impactos da inteligência artificial na educação e dos desafios para uma abordagem crítica e responsável

Estadão Blue Studio
A inteligência artificial (IA) na educação tem o potencial de revolucionar a aprendizagem, além de ampliar o acesso ao conhecimento. No entanto, no Brasil, a implementação dessa tecnologia ainda enfrenta desafios estruturais na aplicação em larga escala, como a falta de capacitação de professores e a desigualdade entre as redes pública e privada.
Camila Achutti, programadora e professora, “necessariamente nessa ordem”, como ela se define, é fundadora da Mastertech, uma escola de tecnologia, agilidade e inovação para times e empresas. Em entrevista ao Estadão Blue Studio, ela alertou para a necessidade de uma adoção crítica e ética da IA no cenário educacional. A empresária acredita que essa ferramenta deve ser utilizada para otimizar processos, sem substituir a essência do ensino e do pensamento cognitivo.
Na entrevista, Camila também apontou a necessidade de formar profissionais aptos a lidar com vieses algorítmicos e com os impactos socioeconômicos desse recurso. Para ela, no contexto brasileiro, o uso da IA ainda se apresenta como uma possibilidade em construção, e não uma prática consolidada.
Como a IA está sendo aplicada no setor educacional no Brasil?
Hoje, no contexto brasileiro, enfrentamos muitos desafios para adotar a IA em larga escala. Existem poucas soluções e, quando implementadas, são superficiais e limitadas a nichos, como a correção de redação. A maior parte está concentrada no ensino privado, que possui mais recursos financeiros. Em nível global, vemos um avanço maior, com pesquisas que apontam impactos positivos e negativos. No Brasil, porém, de forma bastante crítica, o uso da IA na educação ainda me parece mais uma aposta do que uma realidade.
Como a Mastertech tem incorporado a IA em seus cursos e metodologias?
Na Mastertech, decidimos utilizar a IA para otimizar processos, sem terceirizar o conteúdo que define nossa identidade. Não usamos a IA para criar aulas ou desenvolver narrativas, pois valorizamos a autenticidade. No entanto, aproveitamos a tecnologia para personalizar experiências e aprofundar análises. Nosso foco é capacitar os alunos com pensamento computacional e ajudá-los a entender dados de entrada, processos e consequências. Essa abordagem os torna mais críticos, responsáveis e preparados para os desafios do futuro. Acreditamos ser inegociável não terceirizar para uma inteligência artificial o que nos humaniza. Esse é um recado para o mundo.
Quais os principais impactos sociais que a disseminação da IA pode causar na sociedade?
Duas consequências principais são preocupantes. A primeira é a terceirização do nosso processamento cognitivo. Assim como delegamos nossa memória para a internet, agora estamos transferindo nossa capacidade crítica, produtiva e imaginativa para a IA, que antes era nosso maior trunfo. Com muito pouco, conseguíamos produzir muita coisa. Isso preocupa, principalmente em relação às novas gerações, que já nascerão sem aprender a construir conhecimento por si próprias. A segunda é o rearranjo econômico, que pode levar ao desemprego e à necessidade de repensar a formação profissional.
Os vieses algorítmicos são uma grande preocupação na aplicação da IA. Como a educação pode ajudar a formar profissionais aptos a identificar e mitigar esses riscos?
A educação é peça-chave para isso. A IA é uma máquina muito boa para fazer previsões, e não julgamentos. Os vieses são inevitáveis, porque a IA trabalha com dados do passado, que nem sempre refletem a realidade atual. A educação tem o papel de formar profissionais capazes de identificar esses vieses e mitigá-los. Por isso, a diversidade nas equipes de desenvolvimento dessas tecnologias é essencial, pois diferentes perspectivas ajudam a identificar inconsistências antes que os sistemas cheguem ao mercado. Eliminar completamente esses vieses não é possível, porque estamos falando de máquinas preditivas, e não de sistemas capazes de fazer adequações culturais. Então, educação e diversidade são as nossas melhores apostas para um futuro mais justo e ético com a IA.
Como você enxerga a IA no contexto brasileiro?
Em um nível global, vamos ver aplicações de IA em todos os setores. Assim como a internet transformou a vida das pessoas, a IA também chegará a diversos nichos. No entanto, ainda vejo desafios para que o Brasil deixe de ser apenas um consumidor e passe a ser um criador — ou até mesmo exportador — de tecnologia. Hoje, formamos poucos profissionais capacitados para desenvolver essas soluções. Mas, no médio e longo prazo, de novo, com investimentos em educação e diversidade, podemos criar soluções arrojadas e impactantes para o mundo inteiro.
#Trends: “Não podemos terceirizar o que nos torna humanos”, diz Camila Achutti
Foto: Tiago Queiroz/Estadão