Hidrogênio verde vira esperança de startups para ‘limpar’ transportes e indústria
Empresas de tecnologia pesquisam maneiras de descarbonizar setores altamente poluentes
Por Guilherme Guerra
Tido como uma das maiores esperanças para a descabornização dos países, o hidrogênio verde (H2V, na sigla) é alvo não só de empresas multinacionais com projetos e acordos bilionários, mas também de startups, que operam em escala menor. A diferença é que, ao contrário das primeiras, o foco dessas empresas pequenas de tecnologia não é na exportação da commodity e em obras de infraestrutura, mas sim em criar soluções periféricas para o próprio mercado interno do Brasil.
A estratégia está de acordo com as diretrizes do Programa Nacional de Hidrogênio (PNH2), lançadas pelo governo federal em julho de 2021. O documento prevê que o Brasil deve desenvolver uma “economia do hidrogênio”, na qual a base industrial do País atenda não só ao mercado externo (por meio de cooperação com outras nações, por exemplo), mas também à demanda interna rumo à transição energética.
O hidrogênio verde, que é aquele cuja origem vem de fontes de energia limpas (como a solar ou a eólica), é tido como o principal substituto dos combustíveis fósseis em diversas indústrias e aplicações. No futuro, espera-se que o insumo seja utilizado para reduzir a utilização de dióxido de carbono da indústria de fertilizantes, de alimentos e de construção civil, além de uso energético para o transporte rodoviário, aéreo e de navegação.
O potencial na mobilidade é o que atraiu a startup química Xield, fundada em 2019 em São Carlos (SP), a entrar no ramo de produção de hidrogênio verde em 2022. Nascida como uma empresa de nanotecnologia, especializada em trabalhar com as indústrias de pecuária (no manejo do nanocobre para a alimentação de suíno e aves) e de saúde (com a produção de nanoprata para esterelização de produtos e ambientes), a companhia firmou uma parceria com a Universidade de São Paulo (USP), pela qual começou a desenvolver um protótipo de um reformador eletroquímico que converte etanol em hidrogênio verde.
O objetivo da Xield é que essa tecnologia seja inserida nos automóveis elétricos movidos à célula de combustão. Diferentemente dos veículos puramente elétricos, que são carregados por eletricidade na tomada (como um celular, por exemplo), esse carro pode ser abastecido diretamente com hidrogênio em postos de combustíveis. A “mágica” acontece por reação química: o hidrogênio entra em contato com o oxigênio da atmosfera, produzindo a água (descartada pelo veículo) e eletricidade, utilizada para movimentar o carro.
No entanto, a viabilidade de custo e de armazenamento do hidrogênio, dois dos principais desafios do insumo, dificultam a massificação desses automóveis no mercado mundial. Mas o protótipo da startup brasileira visa a alterar essa realidade, permitindo que o abastecimento por etanol, produzido em abundância no Brasil e de origem limpa, e deixando para o próprio veículo fazer a conversão em hidrogênio.
A vantagem, diz a Xield, é que o etanol, cuja fórmula química é C2H6O, é mais eficiente energeticamente. Após o reformador entrar em ação, uma única molécula vai gerar outras seis de hidrogênio (cuja fórmula é H2). Na prática, isso significa que um veículo consegue rodar mais com o hidrogênio reformado do etanol. A Xield calcula que, para cada 50 litros de etanol, um veículo tradicional roda 450 km após encher o tanque com o insumo da cana de açúcar, enquanto um automóvel elétrico movido a célula de combustão, como o Toyota Mirai, pode chegar a 890 km rodados com a reforma em hidrogênio.
“Em vez de chegar no posto e abastecer o carro com hidrogênio, vai ser possível abastecer diretamente com etanol”, explica Guilherme Tremiliosi, fundador e presidente executivo da Xield. Para isso, os automóveis vão ter de ter tanques para receber o etanol, bem como o reformador da startup. O CEO cita que veículos pesados, como caminhões e ônibus, são mais aptos a receber a tecnologia, já que podem receber tanques maiores e, com isso, ganhar maior autonomia de quilometragem. Num país com predominância do transporte rodoviário, inclusive de cargas, e com produção intensiva de etanol, a estratégia pode ser essencial para a descarbonização da mobilidade. “Nossa solução faz muito sentido para o mercado interno do Brasil, porque é criada especificamente para onde existe etanol.”
Esse futuro deve demorar, no entanto. O desenvolvimento da conversão de etanol em hidrogênio em veículos movidos a células de combustão está em estudos iniciais em todo o mundo, mas o interesse vem crescendo. O principal obstáculo é baixar os custos de produção, que ainda são elevados devido à necessidade de se usar grandes quantias de energia no processo — ainda que de origem limpa.
A Xield afirma que desenvolve o reformador em parceria com duas montadoras, uma americana e outra alemã. A expectativa é ter um protótipo finalizado em até três anos, com a entrada no mercado em até cinco anos. “Esse é um trabalho conjunto, com cada um em sua especialidade. Não somos uma empresa automotiva, e sim química. É aí que nos unimos ao mercado”, explica Tremiliosi.
Aditivo para combustíveis fósseis
Se uma solução de combustível movido a hidrogênio verde ainda está distante de se transformar em realidade, uma possibilidade explorada é utilizar o gás como aditivo em combustíveis fósseis. Isso permite acelerar a queima do diesel ou gasolina, por exemplo, aumentando a performance e eficiência. Ou seja, é possível rodar mais e com menos utilização de combustível fóssil.
A startup Protium Dynamics, idealizada em 2015 e oficialmente fundada em 2018 em Maringá (PR), desenvolveu o EcoTorque, que é uma usina de água que vai acoplada ao veículo. O hidrogênio é produzido a partir da eletrólise, processo químico que separa as moléculas de hidrogênio e de oxigênio da água (H2O) por meio de eletricidade. Daí o gás de H2 obtido é injetado no combustível.
O objetivo é acoplar o EcoTorque, vendido por cerca de R$ 7,5 mil, em motores de frotas de caminhões, na indústria naval e até em locomotivas — a startup tem cerca de 10 clientes, com 70 produtos rodando pelo Brasil. A Protium Dynamics explica que a expectativa é de redução de 5% a 15% do consumo de combustível fóssil num veículo, gerando até 5% de redução da emissão de gás carbônico. Nos cálculos da startup, um único caminhão pode economizar R$ 20 mil em despesas com diesel ao ano, bem como deixar de emitir 12 toneladas de CO2 na atmosfera.
“Ainda é inviável financeiramente usar o hidrogênio completamente, então utilizamos esse gás como aditivo a um combustível fóssil. Com isso, reduzimos parcialmente a emissão de gases poluentes”, conta Igor Zanella, fundador e presidente executivo da Protium Dynamics, que tem Bruno Stocco e Franco Leonardi como cofundadores. “É uma estratégia de mitigação.”
Desenvolver essa tecnologia, no entanto, não foi fácil. A Protium participou de uma série de programas de inovação até chegar ao EcoTorque, sendo dois deles sob tutoria da Fundação Araucária, braço de incentivo à inovação do governo do Paraná. Segundo Zanella, um desses programas foi essencial para evitar que a startup fosse à falência, graças a um edital de R$ 330 mil que permitiu que a empresa continuasse apostando no produto. Desde então, todo o caixa gerado pela startup é reinvestido em pesquisa e desenvolvimento.
“Agora, há muito mais oportunidades para o hidrogênio. Antes, falávamos de sustentabilidade e ninguém dava muita pelota. O interesse está muito maior.” Igor Zanella, CEO da startup Protium Dynamics
“Estamos há oito anos desenvolvendo uma tecnologia que só agora começa a ganhar mercado”, explica o CEO. “Agora, há muito mais oportunidades para o hidrogênio. Antes, falávamos de sustentabilidade e ninguém dava muita pelota. O interesse está muito maior.”
Alemanha tem interesse no H2 de startups brasileiras
No Brasil, a promoção do hidrogênio verde no empreendedorismo tem sido liderada pela Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha (AHK, na sigla em alemão). Desde 2022, a organização encabeça o primeiro programa de inovação para startups de hidrogênio verde no País, o iH2 Brasil, cuja terceira edição terminou no ano passado. Ao todo, 24 empresas passaram pelo ciclo de incubamento da câmara — incluindo a Xield e a Protium Dynamics.
O objetivo da AHK é baixar o custo da produção de hidrogênio de baixo carbono no Brasil, viabilizando oportunidades para diferentes indústrias. Altamente interessadas no insumo, a Alemanha e as empresas do país europeu fazem parcerias estratégicas para alavancar esse mercado, como forma a desfossilizar a economia alemã.
“A Alemanha tem uma necessidade de energia para uso doméstico, mas o país não tem os recursos naturais nem o espaço para gerar essa energia. Por isso, passa a investir em países para desenvolver iniciativas para que, em algum momento, isso seja exportado”, explica Bruno Vath Zarpellon, diretor de inovação e sustentabilidade da AHK.
O Brasil é parceiro-chave nessa estratégia. Segundo Zarpellon, a alta produção de energia renovável, a abundância de água e a proximidade com outros países potenciais compradores de hidrogênio tornam o País um competidor de peso para a produção em massa do gás hidrogênio oriundo de fontes limpas. E essa vocação natural pode tornar o insumo brasileiro mais barato do que o de outros países. “O Brasil tem tudo para ser um dos principais nomes”, diz ele. “Por que não apostar nessa parceria para subsidiar essa energia necessária?”.
“O Brasil tem tudo para ser um dos principais nomes na produção do hidrogênio verde. Por que não apostar nessa parceria?” Bruno Vath Zarpellon, diretor de inovação e sustentabilidade da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha
Também uma das empresas incubadas pelo iH2, da AHK, a startup Eidee, nascida em 2009 em Joinville (SC), é um dos frutos da cooperação teuto-brasileira. A companhia firmou uma parceria com a companhia alemã Enapter para o licenciamento do eletrolisador portátil AEM, que permite a produção de hidrogênio de qualquer lugar a partir de módulos locais. A única condição para o funcionamento é que haja água e energia renovável para a desencadear a reação química de separação de moléculas.
“Com esse produto, qualquer um pode produzir hidrogênio, assim como, hoje, qualquer um pode produzir sua energia elétrica dentro de casa (com placas solares no telhado)”, afirma Claudio Dantas, cofundador da Eidee.
A Eidee nacionalizou a solução da Enapter, tornando-se responsável por oferecer suporte e cuidar da manutenção da tecnologia no Brasil. Além disso, a startup brasileira faz a integração do equipamento alemão, que fornece apenas a tecnologia do módulo de conversão. Em abril, os técnicos da startup devem retornar à Alemanha para mais um treinamento com a companhia europeia.
“Quando se fala de hidrogênio, se trata de investimentos milionários. Uma startup não tem condição de fazer isso sozinha” Claudio Dantas, cofundador da Eidee
Atualmente, o eletrolisador da Eidee está apenas em pesquisa em laboratórios da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Universidade Federal de Santa Catarina e um projeto-piloto da Copel. Além disso, a startup busca parceiros por meio de editais da Aneel e Finep “para completar o nosso processo de nacionalização”, diz Dantas.
“Estamos buscando a subvenção desses editais de inovação, porque, quando se fala de hidrogênio, se trata de investimentos milionários. Uma startup não tem condição de fazer isso sozinha. Por isso buscamos empresas-âncoras para participar dessa transição energética, e nós fornecemos uma solução nacionalizada para compor esses pilotos”, explica o CEO da Eidee.
Hidrogênio verde vira esperança de startups para ‘limpar’ transportes e indústria
Foto: CELIO MESSIAS/ESTADÃO
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