A pandemia de covid-19 não criou da noite para o dia um tipo novo de consumidor, um ser digital. O que a crise sanitária trouxe para o cenário foi uma aceleração de tendências que se verificavam há alguns anos, embora muitas marcas ainda estejam presas em um modelo mental ultrapassado. A opinião é de Fábio Mariano Borges, professor do programa de Mestrado Profissional em Comportamento do Consumidor da ESPM.
Na avaliação de Borges, as relações de consumo deste século são amparadas em três pilares: presença online, qualidade dos serviços e gestão da reputação das marcas. Para ele, investir em tecnologia sem uma visão humanizadora e tocar os negócios sem atentar para questões como ética, cidadania e diversidade são erros enormes. Mas mesmo quem escorregou pode se recuperar. Hoje em dia, até mostrar vulnerabilidade pode ser considerado uma força.
ESTADÃO MELHORES SERVIÇOS | Como analisar o comportamento do consumidor neste cenário de constantes mudanças?
FÁBIO MARIANO BORGES | É preciso desmistificar algumas coisas. Falam muito que o consumidor mudou. Na verdade, a vida mudou. Queriam que o consumidor estivesse onde? Ele ficou sim mais experiente com os serviços porque antes a frequência com que ele os acessava era menor. O consumidor ficou muito mais exposto a uma diversidade maior de serviços. A pandemia não trouxe nada de novo, nenhuma tendência. Foi mais um acelerador de tendências. Por exemplo, houve mais envolvimento com o mundo digital, seja com o comércio online, seja nas redes sociais. Isso não tem mais volta.
“É preciso observar os três pilares deste século: presença online, qualidade do serviço e reputação da marca”
Como as empresas vão conseguir se manter competitivas?
É preciso observar os três pilares deste século. O online, a qualidade do serviço e a reputação. No primeiro, tem o exemplo da educação digital. Após a experiência, muita gente não vai mais querer o modelo de aulas presenciais. E não foi só nas escolas que isso mudou. Os profissionais autônomos também. Falo por experiência própria. Montei um curso online de três dias, com três horas de aula por dia e com um mínimo esforço de vendas. Consegui reunir 200 alunos pagantes e isso mudou minha cabeça. Mas por que consegui vender para 200 pessoas tão rápido? Pela minha reputação. Nós estávamos num modelo mental que associava a educação ao ensino presencial.
“Antes era importante dizer ‘eu sou perfeito’. Hoje é mais importante a empresa dizer ‘não sou perfeita, mas busco melhorar’”
Quem migra para digital precisa dar atenção a quais detalhes?
Precisa ter um bom serviço, com um bom sistema [tecnológico], um chat automático para tirar dúvidas, meios de pagamento facilitados, um localizador do produto durante a entrega. Mas o segredo hoje, a palavra da vez, é humanização. A Lu do Magalu (atendente virtual do Magazine Luiza), por exemplo, é uma inteligência artificial humanizada. Toda aparição dela é humanizada. Tanto que até assédio ela já recebeu. É preciso dialogar com o consumidor sobre o conteúdo e as pautas que ele quer. Tem de falar menos de produto e marca e mais dos assuntos de que a pessoa precisa, olhar para diversidade das pessoas. Isso também significa expor as vulnerabilidades. Antes era importante dizer: eu sou perfeito. Hoje é mais importante a empresa dizer: não sou perfeita, mas busco melhorar.
Que outras tendências se fortaleceram?
A personalização. E as empresas têm que se adaptar porque o consumidor pede isso no mundo digital. É como ir a um restaurante, escolher um prato e pedir para tirar o sal ou colocar outro ingrediente. Claro que precisa ter bom senso. Não dá para pedir para mudar o prato inteiro, mas o modelo mental tem de mudar.
“Imagine se cada amigo que você encontrasse tentasse te vender alguma coisa. As marcas podem trazer pautas e ofertas, sem ser invasivas, por meio de conteúdo”
Os algoritmos favorecem essa personalização?
Essa ideia do poder do algoritmo é um pouco mítica. Ele rastreia nossas escolhas, mas não é um adivinho. Ele ajuda na oferta de personalização, juntando grupos de clientes com perfis semelhantes, mas isso não é uma individualização. Um exemplo de personalização é a oferta de conteúdo por corretoras financeiras sobre como aplicar na bolsa. São disparados conteúdos conservadores para investidores com esse perfil e agressivos para os mais arrojados. E tem também um conteúdo para iniciantes, explicando por que e como aplicar em ações. Isso é um exemplo de humanização. Não estão vendendo serviço nenhum. Imagine se cada amigo que você encontrasse tentasse te vender alguma coisa. As marcas podem trazer pautas e ofertas, sem ser invasivas, por meio de conteúdo.
E a reputação? Muita empresa se deu mal recentemente.
Tem muita gente que escorregou nessa crise nos três pilares: serviço, reputação e presença online. Teve marca errando na reputação e o consumidor deu respostas rápidas e diretas. E muita marca foi criticada porque o sistema não funcionou, o aplicativo não carregou. No serviço, entregar o produto numa embalagem ruim ou deixar o cliente esperando muito tempo é um problema.
TRÊS LIVROS
‘A Era do Inconcebível’, de Joshua Cooper
‘Abre a mente para planejar em tempos de incertezas’‘O que é Futuro?’, de Francesco Morace
‘Futuro não é destino. Podemos construí-lo’‘Carreiras e Propósito’, de Raíssa Farjo
‘Sem propósito a vida está fadada ao nada’
Perda de reputação é reversível?
Tudo é reversível. Uma empresa não está condenada à morte a não ser que sua estrutura financeira já esteja comprometida. A gente não vive num mundo assassino. Por isso é importante observar os valores. O líder que não estiver alinhado vai ter que trocar seus valores. Lembro do caso da italiana Barilla, em 2013 [na época, o presidente do conselho, Guido Barilla, afirmou que a empresa não iria veicular anúncios que mostrassem casais gays, gerando reação social negativa e ameaça de boicote à marca]. Ele mudou seu discurso e mostrou isso com ações práticas. Precisa mostrar a intenção de mudar. Mesmo na concorrência selvagem, estão sendo valorizados temas como cidadania, como ética. Acho isso maravilhoso.