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Estadão

Produção:

Blue Studio

Levantamento feito
em parceria com:

Blend
27 de março de 2022

Entrevista – Hilaine Yaccoub

“Pandemia reaproximou economia e comportamento social”

Hilaine Yaccoub define a Antropologia como “a ciência que está perto das pessoas, mistura-se a elas, entra nas casas das famílias, busca conexões para entender profundamente a realidade do outro”. É um conceito que ela levou ao extremo quando decidiu viver por quatro anos numa favela do Rio de Janeiro para estudar Sharing Economy (Economia de Compartilhamento), tema do seu doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). 

Especializada em Antropologia do Consumo, Hilaine atua como consultora de empresas dos mais diversos setores. Entre elas, Natura, Nestlé, Red Bull, Positivo, C&A, Globo e L’Oréal. Ao estudar movimentos culturais e lógicas de consumo para a construção de soluções e tomadas de decisão, o trabalho da pesquisadora é ajudar na criação de pontes entre pessoas e marcas – relação que vem passando por um grande número de turbulências, desafios e oportunidades desde o início da pandemia, há praticamente dois anos.

O QUE MUDOU, DE FORMA GERAL, NO PERFIL DOS CONSUMIDORES BRASILEIROS EM DECORRÊNCIA DA PANDEMIA?

HILAINE YACCOUB | Não podemos esquecer, em primeiro lugar, que nesse período o País empobreceu, com queda brusca do PIB e aumento do desemprego. Além disso, produtos básicos, como feijão e arroz, ficaram bem mais caros. O mesmo ocorreu com serviços essenciais, como energia elétrica e gás. 

Foi preciso lidar com a pandemia em si e, ao mesmo tempo, com todas essas circunstâncias econômicas. É por isso que a palavra que melhor sintetiza o período da pandemia é “adaptação”. Adaptou-se melhor e mais rapidamente quem quebrou paradigmas e desconstruiu preconceitos. Isso vale para as pessoas e para as empresas. 

Mudanças significativas ocorreram para qualquer lado que a gente olhe: as compras online como um novo hábito, mais domicílios com pets, busca por roupas mais confortáveis, a Air Fryer se tornando uma espécie de seita. Na soma de tudo isso, a relação das pessoas com o consumo, especialmente nas cidades maiores, certamente se tornou muito diferente do que era antes de 2020.

É POSSÍVEL ENTENDER QUAIS DESSAS MUDANÇAS DEVEM SE TORNAR DEFINITIVAS E QUAIS PODEM AINDA RECUAR UM POUCO EM DIREÇÃO AOS PADRÕES PRÉ-PANDEMIA?

Haverá algum efeito elástico, sim, especialmente para experiências que dependem fortemente do presencial, como lazer e diversão, ou de uma avaliação mais minuciosa pelo consumidor, como frutas e legumes. Mas as pessoas se acostumaram com o melhor uso do tempo e vão pensar duas vezes antes de sair de casa para algo que talvez pudesse ser feito sem deslocamentos. 

Vai ser difícil abrir mão da conveniência que experimentamos nesse período. Além do mais, há os incentivos objetivos para quem opta pelas compras por aplicativo, como descontos e cash back. O consumo se tornou definitivamente híbrido entre presencial e remoto, com o remoto ocupando um espaço muito maior do que antes da pandemia. 

Vamos usar como exemplo a compra de roupas. As lojas desenvolveram vários recursos para tornar essa experiência a mais satisfatória possível: fotos dos detalhes dos produtos, utilização de modelos com vários tipos de corpo, redução do tempo de entrega e a possibilidade de buscar na casa do consumidor os produtos que ele queira devolver. Essas iniciativas continuarão sendo aprimoradas, o que tornará cada vez mais difícil a decisão de ir presencialmente à loja. 

Comprar no e-commerce requer certo treino, para que o consumidor aprenda a olhar elementos como a composição das roupas e as regras e prazos para devolução. A pandemia forçou esse treino e deixou todo mundo mais preparado para o consumo do futuro. Foi uma aceleração de um processo que inevitavelmente ocorreria.

“Adaptou-se melhor e mais rapidamente quem quebrou paradigmas e desconstruiu preconceitos. Isso vale para as pessoas e para as empresas”
Hilaine Yaccoub, doutora e mestre em Antropologia do Consumo (UFF) e formada em Ciências Sociais (UFRJ)

HOUVE UM AUMENTO DO EMPREENDEDORISMO NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA – AINDA QUE, EM MUITOS CASOS, POR DESEMPREGO OU FALTA DE ALTERNATIVAS. ESSA É UMA TENDÊNCIA QUE DEVE SER CLASSIFICADA COMO “FENÔMENO DA PANDEMIA” OU OS BRASILEIROS VÃO MANTER O RITMO DE CRIAÇÃO DE NEGÓCIOS PRÓPRIOS?

Sem dúvida ocorreu, durante a pandemia, uma grande valorização dos pequenos comércios e negócios locais. Por conta da necessidade, muitas pessoas passaram a empreender e a contar com a rede e a vizinhança para vender seus produtos ou serviços. Houve uma certa comoção e união em torno do objetivo de dar suporte a essas iniciativas. 

As escolhas passaram a ser em certa medida pautadas pela solidariedade, mas também pela sensação de personalização e customização que um pequeno negócio pode proporcionar. As grandes lojas têm muito a aprender com isso, pois, para quem vende, a grande questão do e-commerce é como humanizar essa relação. Pequenos empreendedores costumam estar mais disponíveis para prestar informações e encantar o cliente com detalhes, a exemplo de recados escritos à mão acompanhando as entregas. Não dá para substituir tudo por robôs.

O CONSUMO E A ANTROPOLOGIA TÊM COMO PONTO DE CONVERGÊNCIA A IDEIA DE QUE É PRECISO CONHECER AS PESSOAS ALÉM DA SUPERFICIALIDADE. AS EMPRESAS BRASILEIRAS TÊM TRILHADO O CAMINHO CERTO PARA CONHECER AS PESSOAS? 

Um dos resultados da pandemia é a reaproximação entre economia e comportamento social, por meio do estabelecimento de relações que vão além do comércio puro. É um retorno às origens da economia. A antropologia tem tudo a ver com isso, pois é a ciência que está perto das pessoas, mistura-se a elas, entra nas casas das famílias, busca conexões para entender profundamente a realidade do outro. Para isso, é preciso desconstruir crenças e conceitos. As empresas também precisam fazer o mesmo para conhecer de verdade seus consumidores e criar vínculos sólidos com eles.

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