Por Will Oremus e Heather Kelly (The Washington Post)
Quarenta anos atrás, o emblemático comercial “1984″ da Apple alinhava simbolicamente a empresa com a resistência do espírito humano contra as forças mecanicistas da conformidade.
Na quarta-feira, 8, a empresa – agora uma gigante global de US$ 3 trilhões – provocou uma reação negativa com um anúncio que parece ir na direção oposta. Se a intenção do anúncio não era ilustrar como a Apple corre o risco de se tornar a vilã de seu próprio mito de herói, a reação a ele certamente sugere isso.
O comercial, que promove o mais recente iPad Pro, apresenta um estúdio repleto de instrumentos analógicos e ferramentas de arte: um metrônomo mecânico, um toca-discos de vinil, uma câmera de filme, potes de tinta, um piano. A cena traz um sentimento de nostalgia até que o anúncio corta para uma visão mais ampla, revelando uma enorme placa de metal pairando acima.
À medida que essa prensa desce lentamente esmagando os instrumentos, lançando cacos e tinta pelos ares, é possível ver que: a prensa de metal é a Apple, destruindo esses amados emblemas da criatividade humana, um após o outro. Quando a placa se retira, o estúdio e todo o seu conteúdo desaparecem – substituídos pelo novo tablet da empresa.
Após a resposta negativa do público, a Apple pediu desculpas pelo anúncio do iPad, que deveria celebrar as possibilidades criativas de seu mais novo e mais caro tablet. Em vez disso, a empresa foi alvo de críticas por parecer destruir ferramentas físicas adoradas, usadas por artistas.
O objetivo era mostrar o quanto o iPad agora é capaz de fazer, mas, em vez disso, ofendeu muitos dos mesmos artistas que são o alvo do dispositivo.
“Nosso objetivo é sempre celebrar as inúmeras maneiras pelas quais os usuários se expressam e dão vida às suas ideias por meio do iPad. Erramos o alvo com esse vídeo e pedimos desculpas”, disse Tor Myhren, vice-presidente de comunicações de marketing da Apple, em um comunicado à revista AdAge.
Os críticos online consideraram o novo anúncio um desperdício e uma falta de respeito. Alguns ficaram chateados com o fato de a Apple parecer estar destruindo materiais de arte em perfeitas condições, enquanto a maioria ficou mais ofendida com a desvalorização das formas mais analógicas de criar arte – especialmente quando ferramentas como a IA estão sendo usadas para automatizar coisas como escrita, música e ilustração.
O anúncio foi concebido como uma brincadeira com um gênero de vídeo popular no TikTok, no qual prensas hidráulicas ou pneus de carro esmagam objetos que estouram, amassam ou explodem de forma sensorialmente satisfatória. A recompensa é que essas ferramentas de criatividade na verdade não foram destruídas, apenas consolidadas em um único e elegante gadget.
Sim, o iPad é um dispositivo versátil, e muitos profissionais criativos o utilizam para uma ampla gama de tarefas. Ao publicar o vídeo no X, o CEO da Apple, Tim Cook, se gabou da “tela avançada” e do poderoso chip M4 do dispositivo mais recente, acrescentando: “Imagine todas as coisas que ele será usado para criar”.
Mas o anúncio chega em um momento em que os artistas se sentem mais vulneráveis à marcha da automação. As mais recentes ferramentas de inteligência artificial (IA) podem imitar o trabalho de um artista sob comando; artigos, músicas e imagens gerados por máquinas estão se misturando e substituindo cada vez mais o trabalho dos humanos. Não é de se admirar que eles estejam sensíveis.
O evento do iPad se inclinou para o que Cook chamou de “poder transformador e promessa da IA”. Historicamente, a empresa tem desempenhado um papel de liderança na ruptura dos setores criativos por meio de softwares como o iTunes (lembra do “Rip. Mix. Burn.”?). De forma mais ampla, seus dispositivos onipresentes passaram a representar o triunfo do mundo digital sobre o analógico.
Uma das primeiras realizações de Steve Jobs foi posicionar os computadores da empresa como amigáveis e úteis (pense no logotipo simples da Apple, no ícone do Happy Mac ou no iMac alegre e colorido). No entanto, ao longo dos anos, inclusive sob o comando de Jobs, as obsessões da empresa com elegância, potência e eficiência deram à sua imagem um brilho mais frio e duro. Isso pode ser um risco em um momento em que até mesmo alguns antigos amantes da tecnologia estão se tornando rebeldes.
Quanto a esmagar as coisas em torno, isso é o que a Apple é acusada de fazer com os desenvolvedores de aplicativos independentes em uma ação antitruste movida no mês passado pelo Departamento de Justiça dos EUA. É notável que os profissionais de marketing da empresa não tenham visto problema nessa metáfora visual.
Por que a nova propaganda do iPad virou uma dor de cabeça para Apple?
Foto: Apple/Reprodução