EDITORIAL
21/10 no digital, 27/10 especial no impresso
Inclusão de pessoas neurodivergentes ganha força no ensino superior com a criação de novas políticas lideradas por elas
Por Vanessa Selicani
Novas leis, políticas de inclusão e o aparecimento de grupos organizados estão dando vida nova para a participação de jovens neurodivergentes no ensino superior. Neurodivergente é o termo utilizado para falar de quem tem padrões de organização da mente diferentes dos neurotípicos, como é o caso de quem tem transtorno global do desenvolvimento, como autismo, hiperatividade e déficit de atenção, por exemplo.
Por muitos anos, a discussão sobre inclusão na educação se limitou ao ensino básico. “Os transtornos não desaparecem na vida adulta. E discutir políticas para incluir essas pessoas no ensino superior e no mercado de trabalho é um passo enorme”, afirma o estudante de Medicina na Universidade Metropolitana de Santos (Unimes), Arthur Ataide Ferreira Garcia, de 20 anos.
O universitário, diagnosticado com autismo desde os 9 anos de idade, foi o quinto colocado no processo seletivo realizado no ano passado na instituição, uma grande vitória para quem era ridicularizado até por professores. “A primeira vez que respondi para uma professora que queria ser médico, ela disse que pessoas como eu, autistas, só chegavam aos hospitais para internações em sanatórios.”
Acesso e respeito
Garcia é autor do texto da Lei Estadual 17.759/2023, apresentada na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) pela deputada Solange Freitas (União Brasil) e sancionada em setembro. A legislação determina que jovens com autismo e outros transtornos globais de desenvolvimento tenham direito a avaliação individualizada nas redes de ensino pública e privada. O acesso a avaliações que respeitem as neurodivergências de cada um é uma das principais reivindicações desse público.
O estudante do último ano da Faculdade de Direito da USP Silvano Furtado da Costa e Silva, 24 anos, explica que cada neurodivergente tem necessidades específicas. “Tive professores que me diziam que era nítido que eu tinha o conhecimento, mas que isso não era refletido nas provas. Cada autista pode ter uma necessidade diferente para medir seu conhecimento.” Ele recebeu o diagnóstico quando já estava na universidade, aos 20 anos.
Silva não se sentia compreendido na instituição e resolveu se posicionar publicamente no fim de 2020. “Disse em uma audiência que não pisaria ali de novo após me formar se a avaliação não mudasse.” Após o episódio, teve o aval da faculdade para criar uma política permanente de acessibilidade pedagógica, em que cada estudante neurodivergente pode escolher a forma como quer ser avaliado. “No meu caso, por exemplo, não faço provas, mas um trabalho escrito em casa.”
Foi a ação na Faculdade de Direito da USP que inspirou a criação da lei estadual sancionada em setembro e que incentivou também outras instituições a adotar medidas parecidas. “É muito simbólico que umas das faculdades mais antigas do País, criada há quase 200 anos, tenha conseguido sair na vanguarda do tema”, diz o estudante.
“Tive professores que me diziam que era nítido que eu tinha o conhecimento, mas que isso não era refletido nas provas. Cada autista pode ter uma necessidade diferente para medir seu conhecimento.”
Silvano Furtado da Costa e Silva, estudante do último ano da Faculdade de Direito da USP
Mais fortes
Desde o ano passado, Silva e Garcia uniram suas forças pela inclusão com a fundação da Associação Nacional para a Inclusão das Pessoas Autistas (Ania/BR). A organização tem representantes de 40 outras instituições de ensino superior comprometidos em trocar experiências para melhorar o tratamento dado às pessoas neurodivergentes.
“A gente tenta mostrar que, se até a mais tradicional faculdade do País, que é a Faculdade de Direito da USP, consegue se reinventar na forma de dar aula, por que as outras não conseguiriam?”, diz o presidente da Ania/BR, Guilherme de Almeida, 41 anos, doutorando em Educação pela Unicamp e que teve o diagnóstico de autismo aos 37 anos.
A associação trabalha em parceria com a Universidade de Stanford, na Califórnia, Estados Unidos. “Os pesquisadores de lá têm protocolos que aqui ainda testamos mais por instinto.” Além das avaliações individualizadas, Almeida cita programas simples criados pela instituição e que podem auxiliar na inclusão. “Um deles é o trabalho de mentoria. Os estudantes que chegam na universidade recebem o apoio de veteranos que também têm alguma neurodivergência. Ele é um mediador que sabe dos desafios e vai dividir experiências.”
Por um ensino mais inclusivo
A busca por outras pessoas neurodivergentes na universidade é um dos principais pontos levantados pela Associação Nacional para a Inclusão das Pessoas Autistas (Ania/BR) para facilitar a adaptação de quem está chegando agora ao ambiente. “Busque um grupo de apoio e, se não encontrar, crie o seu”, aconselha o presidente da instituição, Guilherme de Almeida. Os coletivos existem em universidades como a USP e a UnB (Universidade de Brasília).
Para o estudante de Medicina Arthur Ataide Ferreira Garcia, as pessoas neurodivergentes não devem subestimar sua capacidade, nem esconder dificuldades. “Cada pessoa é única e pode sim precisar de suporte que os outros não necessitam. Respeitar as dificuldades é um passo importante. Não tenha medo de reivindicar, é um direito seu.”
Silvano Furtado da Costa e Silva, da Faculdade de Direito da USP, afirma que é importante lembrar que os desafios vão existir, já que o ambiente universitário não foi feito pensando nessas pessoas. “Agora, há leis para as adaptações, não é um favor. E casos de resistência podem ser judicializados.”
Rota de mudança
As universidades públicas federais são pioneiras em adotar cotas para pessoas com deficiências, que incluem tanto questões de mobilidade, cegueira e surdez como autistas e estudantes com outros transtornos. Dados do Censo da Educação Superior 2022 divulgados neste mês pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram que 2.059 pessoas com deficiência ingressaram por meio de cotas naquele ano.
Em toda a rede pública e privada, são 79 mil pessoas com deficiência matriculadas, 0,8% do total de estudantes. Apenas 8.300 deles têm deficiência cognitiva e 6.000 têm Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD), que inclui, por exemplo, autistas.
A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mantém cotas também na pós-graduação, mas que não são atingidas. “Sobram vagas, que acabam indo para a ampla concorrência”, explica a coordenadora de integração acadêmica da instituição, Marisa Sacaloski.
A Unifesp reforçou as políticas de inclusão de pessoas neurodivergentes em 2018, com a criação dos primeiros núcleos temáticos. “Hoje, os estudantes com necessidades especiais fazem os apontamentos do que precisam quando entram e nós aplicamos os pedidos. Mas é importante lembrar que a educação inclusiva é uma novidade no ensino superior. Por isso, alguns docentes ainda têm dúvidas práticas sobre como operacionalizar as mudanças.”
Foto: Adobe Stock
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