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Educação antirracista: da lei à ação

Mais de 20 anos após entrar em vigor, lei que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira ainda não saiu totalmente do papel na maior parte das escolas

26 de setembro de 2025

Por Giovana Pastori

O ano de 2003 marcou uma conquista histórica para o movimento negro no Brasil: a promulgação da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo da educação básica. Cinco anos mais tarde, a história e a cultura dos povos indígenas do Brasil também foram incluídas na legislação.

O objetivo dessas iniciativas é promover o respeito à diversidade cultural, fortalecer a identidade de povos marginalizados e combater preconceitos e estereótipos, ampliando o repertório de crianças e jovens, muito pautado na educação tradicional por referências eurocêntricas. “Isso não significa rejeitar as contribuições europeias, mas sim reconhecê-las ao lado das experiências e saberes das populações negras e indígenas”, explica Natanael Conceição, supervisor de educação antirracista do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), organização dedicada à redução de desigualdades raciais.

Sem aplicação
Na prática, entretanto, a lei provocou poucas mudanças nos currículos escolares até aqui. Segundo um estudo realizado em 2023 pelas organizações não governamentais Geledés e Instituto Alana, mais de 70% das Secretarias Municipais de Educação ainda não têm nenhuma ou há poucas ações para cumprir a legislação. Dessas redes municipais, 53% fazem ações isoladas e pouco estruturadas, e outras 18% admitem não realizar nenhum tipo de ação.

É um cenário pouco animador para o avanço da educação antirracista no País, pois sinaliza que o próprio poder público não reconhece a obrigatoriedade de seguir a legislação. “É uma atitude que fortalece e dissemina a interpretação de que sua aplicação é opcional”, diz Edneia Gonçalves, coordenadora executiva da Ação Educativa, associação civil que atua nas áreas de educação, cultura e juventude.

“Isso não significa rejeitar as contribuições europeias, mas sim reconhecê-las ao lado das experiências e saberes das populações negras e indígenas”
Natanael Conceição, supervisor de educação antirracista do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR)

De acordo com a pesquisa do Geledés e do Instituto Alana, os principais desafios para o cumprimento da lei são a falta de apoio para as escolas, a dificuldade dos profissionais em introduzir a temática nos currículos, a ausência de informação e orientação sobre o tema e a pouca mobilização ou desinteresse dos próprios professores nas instituições.

A socióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Unirio Andrea Lopes diz que a execução da lei frequentemente se traduz em ações muito pontuais: “Seja pela dificuldade de formação de professores ou da má vontade institucional, a obrigatoriedade desse estudo muitas vezes não é entendida como algo transversal, mas como um evento no 19 de abril [Dia dos Povos Indígenas] ou durante o mês da Consciência Negra [novembro]”.

As escolas podem agir
Para 64% dos jovens entre 16 e 24 anos, o ambiente educacional é o local onde mais sofrem racismo. O dado alarmante é da pesquisa Percepções Sobre o Racismo no Brasil, realizada em 2023 pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec) a pedido do Instituto Peregum e do Projeto Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista (Seta).

A socióloga e professora Andrea Lopes, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Unirio, alerta que o racismo no ambiente escolar se agrava pela vulnerabilidade de crianças e jovens negros, que têm menos recursos, instrumentos e repertório para lidar com a discriminação do que os adultos. A sensação de exclusão e a fragilidade podem ser ainda maiores para estudantes negros e indígenas que estudam em colégios com público majoritariamente branco, pela falta de representatividade nesses espaços.

“Se a escola não desenvolve ações permanentes, articuladas e intencionais para identificação das características do racismo, com certeza terá dificuldade para enfrentá-lo”
Edneia Gonçalves, coordenadora executiva da organização Ação Educativa

Andrea enfatiza que a prevenção da discriminação racial dentro da escola requer um comprometimento da instituição com a educação antirracista, desde sua organização até os conteúdos e as relações entre as pessoas.

Se um caso de racismo chegar a acontecer, a escola precisa adotar medidas evidentes e efetivas, sem tratar a situação como caso isolado ou confundi-la com bullying. Também é importante ter pronto um protocolo de enfrentamento dessas situações, considerando seu contexto específico. “Se a escola não desenvolve ações permanentes, articuladas e intencionais para identificação das características do racismo, com certeza terá dificuldade para enfrentá-lo”, conclui Edneia Gonçalves, coordenadora executiva da organização Ação Educativa.

 

Bons exemplos a seguir

Um caso de trabalho antirracista mais integrado ao projeto pedagógico da escola pode ser encontrado na rede pública de Taguatinga, no Distrito Federal. Criada em 2021, a iniciativa Taguatinga Plural oferece apoio financeiro e pedagógico para o desenvolvimento de ações antirracistas nas escolas estaduais da região. Segundo o coordenador do projeto, André Lúcio Bento, algumas unidades já desenvolviam atividades ligadas ao tema, mas, muitas vezes, de forma dispersa, sem foco e articulação. Agora, André acredita que “há uma interpretação menos estereotipada e mais diversa do que representam os povos pretos e indígenas, além de uma abordagem mais interdisciplinar”.

Outra referência é a Escola Maria Felipa, considerada a primeira afro-brasileira do País. Com unidades em Salvador e no Rio de Janeiro, a instituição privada tem o antirracismo no centro de seu modelo pedagógico. “Temos um currículo que potencializa os saberes culturais, filosóficos, científicos e tecnológicos dos povos africanos e afro-brasileiros”, explica Cristiane Coelho, diretora da unidade de Salvador.

Entre os pontos positivos dessa abordagem, Cristiane destaca o desenvolvimento da consciência social, racial e ética desde a infância, permitindo que as crianças negras se reconheçam positivamente no currículo, nos livros, nas falas dos educadores e nas propostas pedagógicas – o que gera sentimento de pertencimento, valorização da ancestralidade e orgulho da própria história.

“Temos um currículo que potencializa os saberes culturais, filosóficos, científicos e tecnológicos dos povos africanos e afro-brasileiros”
Cristiane Coelho, diretora da unidade de Salvador

Agenda ANTIRRACISTA
A partir da repercussão do caso George Floyd – homem negro assassinado por um policial nos Estados Unidos em maio de 2020 –, a direção do Colégio Equipe, em São Paulo, uniu-se a pais de alunos para criar uma agenda, antirracista de curto, médio e longo prazo. Entre os objetivos da agenda, estão “ampliar a presença de estudantes e professores negros na escola, a revisão do currículo pedagógico e a ampliação do diálogo do colégio com as escolas públicas, movimentos sociais e outros atores da luta antirracista”, explica Evie Santiago, co-fundadora da Comissão Antirracista do Equipe.

Para Luciana Fevorini, diretora do Equipe, as medidas refletiram na redução dos casos de racismo na escola e nas atitudes dos alunos: “Tem-se observado que os estudantes negros se sentem valorizados por meio do resgate de suas raízes ancestrais, assim como o letramento racial de estudantes brancos, a partir da conscientização sobre a herança escravocrata e o reconhecimento do compromisso com a reparação histórica”, conclui.

Foto: Adobe Stock

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