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Artigo
Por Giovana Pastori
O ano de 2003 marcou uma conquista histórica para o movimento negro no Brasil: a promulgação da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo da educação básica. Cinco anos mais tarde, a história e a cultura dos povos indígenas do Brasil também foram incluídas na legislação.
O objetivo dessas iniciativas é promover o respeito à diversidade cultural, fortalecer a identidade de povos marginalizados e combater preconceitos e estereótipos, ampliando o repertório de crianças e jovens, muito pautado na educação tradicional por referências eurocêntricas. “Isso não significa rejeitar as contribuições europeias, mas sim reconhecê-las ao lado das experiências e saberes das populações negras e indígenas”, explica Natanael Conceição, supervisor de educação antirracista do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), organização dedicada à redução de desigualdades raciais.
Sem aplicação
Na prática, entretanto, a lei provocou poucas mudanças nos currículos escolares até aqui. Segundo um estudo realizado em 2023 pelas organizações não governamentais Geledés e Instituto Alana, mais de 70% das Secretarias Municipais de Educação ainda não têm nenhuma ou há poucas ações para cumprir a legislação. Dessas redes municipais, 53% fazem ações isoladas e pouco estruturadas, e outras 18% admitem não realizar nenhum tipo de ação.
É um cenário pouco animador para o avanço da educação antirracista no País, pois sinaliza que o próprio poder público não reconhece a obrigatoriedade de seguir a legislação. “É uma atitude que fortalece e dissemina a interpretação de que sua aplicação é opcional”, diz Edneia Gonçalves, coordenadora executiva da Ação Educativa, associação civil que atua nas áreas de educação, cultura e juventude.
“Isso não significa rejeitar as contribuições europeias, mas sim reconhecê-las ao lado das experiências e saberes das populações negras e indígenas”
Natanael Conceição, supervisor de educação antirracista do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR)
De acordo com a pesquisa do Geledés e do Instituto Alana, os principais desafios para o cumprimento da lei são a falta de apoio para as escolas, a dificuldade dos profissionais em introduzir a temática nos currículos, a ausência de informação e orientação sobre o tema e a pouca mobilização ou desinteresse dos próprios professores nas instituições.
A socióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Unirio Andrea Lopes diz que a execução da lei frequentemente se traduz em ações muito pontuais: “Seja pela dificuldade de formação de professores ou da má vontade institucional, a obrigatoriedade desse estudo muitas vezes não é entendida como algo transversal, mas como um evento no 19 de abril [Dia dos Povos Indígenas] ou durante o mês da Consciência Negra [novembro]”.
As escolas podem agir
Para 64% dos jovens entre 16 e 24 anos, o ambiente educacional é o local onde mais sofrem racismo. O dado alarmante é da pesquisa Percepções Sobre o Racismo no Brasil, realizada em 2023 pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec) a pedido do Instituto Peregum e do Projeto Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista (Seta).
A socióloga e professora Andrea Lopes, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Unirio, alerta que o racismo no ambiente escolar se agrava pela vulnerabilidade de crianças e jovens negros, que têm menos recursos, instrumentos e repertório para lidar com a discriminação do que os adultos. A sensação de exclusão e a fragilidade podem ser ainda maiores para estudantes negros e indígenas que estudam em colégios com público majoritariamente branco, pela falta de representatividade nesses espaços.
“Se a escola não desenvolve ações permanentes, articuladas e intencionais para identificação das características do racismo, com certeza terá dificuldade para enfrentá-lo”
Edneia Gonçalves, coordenadora executiva da organização Ação Educativa
Andrea enfatiza que a prevenção da discriminação racial dentro da escola requer um comprometimento da instituição com a educação antirracista, desde sua organização até os conteúdos e as relações entre as pessoas.
Se um caso de racismo chegar a acontecer, a escola precisa adotar medidas evidentes e efetivas, sem tratar a situação como caso isolado ou confundi-la com bullying. Também é importante ter pronto um protocolo de enfrentamento dessas situações, considerando seu contexto específico. “Se a escola não desenvolve ações permanentes, articuladas e intencionais para identificação das características do racismo, com certeza terá dificuldade para enfrentá-lo”, conclui Edneia Gonçalves, coordenadora executiva da organização Ação Educativa.
Um caso de trabalho antirracista mais integrado ao projeto pedagógico da escola pode ser encontrado na rede pública de Taguatinga, no Distrito Federal. Criada em 2021, a iniciativa Taguatinga Plural oferece apoio financeiro e pedagógico para o desenvolvimento de ações antirracistas nas escolas estaduais da região. Segundo o coordenador do projeto, André Lúcio Bento, algumas unidades já desenvolviam atividades ligadas ao tema, mas, muitas vezes, de forma dispersa, sem foco e articulação. Agora, André acredita que “há uma interpretação menos estereotipada e mais diversa do que representam os povos pretos e indígenas, além de uma abordagem mais interdisciplinar”.
Outra referência é a Escola Maria Felipa, considerada a primeira afro-brasileira do País. Com unidades em Salvador e no Rio de Janeiro, a instituição privada tem o antirracismo no centro de seu modelo pedagógico. “Temos um currículo que potencializa os saberes culturais, filosóficos, científicos e tecnológicos dos povos africanos e afro-brasileiros”, explica Cristiane Coelho, diretora da unidade de Salvador.
Entre os pontos positivos dessa abordagem, Cristiane destaca o desenvolvimento da consciência social, racial e ética desde a infância, permitindo que as crianças negras se reconheçam positivamente no currículo, nos livros, nas falas dos educadores e nas propostas pedagógicas – o que gera sentimento de pertencimento, valorização da ancestralidade e orgulho da própria história.
“Temos um currículo que potencializa os saberes culturais, filosóficos, científicos e tecnológicos dos povos africanos e afro-brasileiros”
Cristiane Coelho, diretora da unidade de Salvador
Agenda ANTIRRACISTA
A partir da repercussão do caso George Floyd – homem negro assassinado por um policial nos Estados Unidos em maio de 2020 –, a direção do Colégio Equipe, em São Paulo, uniu-se a pais de alunos para criar uma agenda, antirracista de curto, médio e longo prazo. Entre os objetivos da agenda, estão “ampliar a presença de estudantes e professores negros na escola, a revisão do currículo pedagógico e a ampliação do diálogo do colégio com as escolas públicas, movimentos sociais e outros atores da luta antirracista”, explica Evie Santiago, co-fundadora da Comissão Antirracista do Equipe.
Para Luciana Fevorini, diretora do Equipe, as medidas refletiram na redução dos casos de racismo na escola e nas atitudes dos alunos: “Tem-se observado que os estudantes negros se sentem valorizados por meio do resgate de suas raízes ancestrais, assim como o letramento racial de estudantes brancos, a partir da conscientização sobre a herança escravocrata e o reconhecimento do compromisso com a reparação histórica”, conclui.
Foto: Adobe Stock