Não é novidade que a Inteligência Artificial tem revolucionado o mercado de trabalho e é usada por diversas áreas do conhecimento. A tecnologia, que se popularizou com o ChatGPT, permite que computadores e máquinas simulem a inteligência humana e a sua capacidade de resolução de problemas. Mas encontrar profissionais especializados na área não é tarefa difícil para as empresas brasileiras – e também de outros países.
Com a ascensão e o alto potencial da IA, bacharelados e cursos tecnólogos com foco em Inteligência Artificial começaram a surgir no País em 2019 e já existem 53 graduações na área registradas do Ministério da Educação (MEC).
Heloisy Rodrigues, de 24 anos, se formou como a primeira mulher bacharel em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás (UFG). O curso é o primeiro – e único até o momento – bacharelado do País focado apenas nesta área. Há outros que trabalham a IA juntamente com áreas correlatas, como Ciência de Dados e tecnólogos específicos para IA.
Ao pesquisar sobre a área, a aluna, que cogitava Medicina por causa da remuneração e do prestígio social, foi atraída pelo mercado de IA, que lhe pareceu atrativo e com bons salários. O curso de IA na UFG é hoje o 3º com maior nota de corte da instituição, atrás apenas de Medicina e Engenharia de Software.
“Eu me dediquei no 1º semestre para saber se iria gostar mesmo. Mas percebi que encontrei o que gostaria de fazer pelo menos por um bom tempo da minha vida”, conta Heloisy.
O currículo do curso de Inteligência Artificial é uma mistura de Matemática, Computação e Empreendedorismo, define ela. “Precisa ter esse viés empreendedor para conseguir resolver problemas e propor soluções que realmente irão agregar na vida das pessoas”, diz ela, ressaltando o foco do curso nas “soft skills”. São as habilidades socioemocionais – como comunicação, liderança – que vão além dos conhecimentos técnicos.
Desde os primeiros meses do curso, a estudante relata contato com iniciativas de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Nos laboratórios, ela pôde desenvolver projetos relacionados às áreas de Educação, Saúde e Marketing, e assim encontrou o nicho em que gostaria de atuar.
Heloisy desenvolveu uma ferramenta capaz de prever quais alunos tinham maior probabilidade de abandonar os cursos em instituições federais, para que as faculdades consigam aplicar medidas para reter os estudantes. Desenvolveu também uma tecnologia para detectar quedas para uma empresa de homecare (cuidados em casa) que monitora idosos por meio de câmera.
“Diferente dos estágios, onde estou fazendo o que a empresa deseja, nos projetos de P&D a gente consegue desenvolver códigos e também a pesquisa”, afirma. “Entender como funciona por trás, quais as soluções mais novas, e nisso aprimoramos conhecimentos gerais de IA.”
A recém-graduada escolheu o caminho do empreendedorismo e tem uma startup que presta serviços para um call center. A parceria com a empresa começou enquanto ainda era estudante e gerou a oportunidade de que ela e seu sócios continuassem prestando serviço para essa empresa, além de prospectarem outros clientes.
Mesmo assim, ela e os colegas contam receber diversas oportunidades de empresas oferecendo vagas de emprego, tanto no Brasil como de companhias estrangeiras que contratam profissionais para trabalhar a distância. “No Brasil, já tem salários atrativos, mas quando olha para fora, com a possibilidade de ganhar em dólar, fica bem mais atrativo”, acrescenta.
Previsão de 77,8 mil vagas, mas também há onda de demissões
Segundo projeção da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom) em 2021, a área de IA deve gerar 77,8 mil empregos no Brasil até 2026, o correspondente a 13,8% de todos os empregos gerados pelo setor de Tecnologia.
Apesar disso, o campo que ganhou impulso durante a pandemia, já percebe uma desaceleração, com salários menores e condições piores para novatos. A mudança de perspectivas passou a ser mais sentida desde 2022, quando o mercado teve uma onda de demissões em massa.
Leandro Aparecido Marcelino, de 30 anos, também já trabalhava com tecnologia quando decidiu cursar o tecnólogo em Inteligência Artificial, na Cruzeiro do Sul Virtual, na modalidade de ensino a distância (EAD). Funcionário de uma empresa de desenvolvimento de softwares, ele foi colocado em um projeto focado em IA e sentiu falta de conhecimento teórico, por isso decidiu procurar uma outra graduação.
“Por mais que eu trabalhe há um tempo na área de Tecnologia da Informação (TI), tinha uma visão mais superficial de como deve se comportar a IA. Quando ingressei, passei a ter um conhecimento de como a máquina funciona”, diz ele, que vai para o 2º semestre do curso.
Segundo o Mapa do Ensino Superior no Brasil, do Instituto Semesp, a área de Tecnologia é um dos campos cujos cursos têm maior taxa de desistência (66,5%). Entre os relatos de estudantes, a dificuldade de manter as graduações atualizadas e o mercado aquecido contribuem para que parte dos alunos abandone a sala de aula e não veja benefícios para a carreira ao investir nas faculdades. Para os conhecimentos técnicos, portanto, recorrem ao autodidatismo ou a cursos de curta duração.
Especialistas ponderam, no entanto, que a formação em ensino superior ajuda a desenvolver uma gama mais ampla de habilidades, como as competências socioemocionais, debates éticos e conceituais.
Daniel Barbosa, presidente da Cilia Tecnologia, empresa que oferece um sistema para realização de orçamento para serviços em oficinas mecânicas e seguradoras de automóveis, conta que procura contratar alunos formados na área, mas diz não ser fácil encontrar profissionais qualificados.
O contato da empresa com a universidade começou quando um aluno que fazia mestrado em Inteligência Artificial desenvolveu uma tecnologia para que os orçamentos realizados pela empresa fossem feitos por algoritmos por meio da análise de fotos da batida do carro, sem depender de análise humana. A solução fez com que a empresa economizasse tempo e dinheiro: um serviço que demorava 30 minutos passou a ser feito em cinco.
A Cilia, então, firmou uma parceria com o Centro de Excelência em IA da UFG. É o mesmo laboratório em que Heloisy desenvolveu seus projetos, que funciona com uma espécie de patrocínio de empresas de tecnologia.
A iniciativa repassa recursos, juntamente com o governo federal, para que os alunos possam colocar em prática aprendizados da sala de aula na resolução de problemas reais dessas empresas.
“Esse Centro de Excelência em IA faz projetos de pesquisa, desenvolvimento, inovação, e tem relação muito próxima à indústria. Já acumulamos, desde 2020, mais de R$ 200 milhões captados e investidos em pesquisa e inovação”, conta Arlindo Galvão, coordenador do curso de Inteligência Artificial da federal goiana.
“Antes, a gente operava muito com alunos de pós-graduação, mestrado e doutorado. Só que isso não é suficiente, e para abordar essa necessidade que o mercado não consegue suprir, precisamos inventar uma graduação em IA”, acrescenta.
As bolsas concedidas aos alunos que atuam no CEIA são “fora da curva” na comparação com auxílios pagos no ambiente acadêmico. Estudantes de IA recebem uma média de R$ 4 mil a R$ 5 mil de bolsa mensal, segundo Galvão. Uma bolsa federal de iniciação científica, por exemplo, é de apenas R$ 700.
“Mais de 90% dos alunos são bolsistas. A bolsa é paga pela própria universidade, com recursos vindo do governo e das empresas para os projetos de pesquisa e desenvolvimento. Para alunos de graduação, há bolsas que começam em R$ 1,2 mil, mas outras que alcançam até R$ 10 mil”, afirma o professor.
Na visão do CEO da Cilia, não basta bons salários para conquistar esses profissionais. “Não é dinheiro é que simplesmente compra a mão de obra, mas sim os desafios. Eles querem se desenvolver e aprender”, afirma.
Para ele, a dinâmica profissional de IA é oposta à que acontece na maioria dos empregos, onde os profissionais vão atrás das vagas. “Se eu quiser abrir cinco vagas amanhã, não existem (profissionais disponíveis). Precisei me vincular à universidade, fazer eventos lá dentro, me relacionar (para encontrar candidatos)”, diz.
“Para as empresas privadas, vejo vantagem gigante de estar envolvido com a faculdade”, acrescenta Daniel Barbosa.
O que é ensinado em um curso de IA?
Coordenador do curso de Inteligência Artificial da Cruzeiro do Sul Virtual, Douglas Almendro afirma que o objetivo é aproveitar as oportunidades oferecidas pelas tecnologias emergentes, aliando conhecimento técnico e desenvolvimento humano. As disciplinas cobrem desde os fundamentos da IA até as tecnologias mais avançadas e suas aplicações práticas.
Alguns dos tópicos abordados ao longo do curso são:
• Técnicas de desenvolvimento de algoritmos
• Lógica e pensamento computacional
• Programação de computadores
• Computação em nuvem
• Big Data
• Análise de dados
• Robótica
• Machine Learning
• Empreendedorismo
Qual a diferença para o curso de Ciência de Dados?
Almendro explica a diferença do curso de Inteligência Artificial para o de Ciência de Dados – ambos têm muitas sobreposições, pois envolvem a análise de dados e o desenvolvimento de modelos preditivos.
Mas enquanto a Inteligência Artificial foca em desenvolver sistemas que podem realizar tarefas que normalmente requerem inteligência humana – como reconhecimento de fala, visão computacional, processamento de linguagem natural e tomada de decisões -, a Ciência de Dados tem foco maior na coleta, análise e interpretação de grandes volumes de dados para identificar padrões e tendências, e assim, extrair “insights valiosos”.
Na prática, a IA é usada para criar sistemas que podem atuar de maneira independente e realizar tarefas complexas e tem aplicações envolvendo carros autônomos, assistentes virtuais, diagnósticos automatizados e robôs, por exemplo.
Já a Ciência de Dados é usada principalmente para apoiar a tomada de decisões empresariais e científicas, com aplicações de análise de mercado, detecção de fraudes e análise de desempenho financeiro, por exemplo.
Ciência da computação, engenharias e Estatística são alguns dos outros cursos de áreas correlatas, mas que muitas vezes também vêm procurar aprofundamento nos cursos de IA, segundo Almendro.
É um curso muito específico?
Galvão diz que já recebeu questionamentos sobre se o curso de IA é muito específico e se o conhecimento poderia ficar datado, devido à rapidez da evolução das tecnologias. Já foi questionado também se esses estudantes, após se graduarem, teriam espaço no mercado de trabalho.
No entanto, ele diz que o curso se provou necessário, com a primeira turma de bacharéis formada neste ano. “Agora que se formaram, conseguimos mostrar que tem um espaço. Toda a turma está muito bem empregada ou empreendendo”, diz.
Há ainda a dúvida se a IA não deveria estar integrada no currículo de outros cursos, em vez de ter um curso específico. Mas para o coordenador do curso na FIAP, John Paul Hempel Lima, há espaço para os dois. “Há alguns anos, percebemos que deveríamos colocar uma disciplina de IA em todos as nossas graduações. Passados dois anos, percebemos que a Inteligência Artificial crescia tanto e com tanta importância no mercado, que resolvemos criar o curso”, diz.
Almendro destaca ainda a ampla gama de setores que já trabalham com IA – como finanças, saúde, varejo, automotivo e marketing -, o que aumenta o leque de indústrias possíveis para os formados na área. Há ainda profissionais sendo empregados em empresas estrangeiras, e outros que abrem as próprias empresas.
Ele acrescenta que “é sempre importante que os profissionais também desenvolvam base sólida de conhecimentos gerais em tecnologia da informação e habilidades interpessoais” para que esses profissionais tenham carreira longa e bem-sucedida, mesmo em um campo em rápida evolução como a IA.
Os graduados em Inteligência Artificial podem se candidatar a vagas de:
• Desenvolvedor de IA
• Especialista em Machine Learning
• Cientista de Dados
• Especialista de Dados
• Arquiteto de Soluções em IA
• Especialista em Visão Computacional
• Especialista em Processamento de Linguagem Natural
• Especialista em Robótica
• Quem são os alunos dos cursos de IA?
• Ingressam nos bacharelados e tecnólogos de Inteligência Artificial desde estudantes que acabaram de sair do ensino médio até aqueles que já têm outra graduação – como engenharias e desenvolvimento de softwares – e já trabalham na área de tecnologia, buscando se aperfeiçoar ou migrar para a área.
Segundo o coordenador do Tecnólogo na Cruzeiro do Sul, os perfis dos ingressantes têm algumas características como: interesse por tecnologia e inovação; habilidades matemáticas e analíticas; experiência em programação; curiosidade científica; e capacidade de resolução de problemas.
Ele afirma ainda que muitos alunos já vêm com experiência acadêmica na área das Exatas, com ênfase em disciplinas como Matemática, Física e Informática.
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