19 de junho de 2018
Apesar das justificativas das instituições, o brasileiro continua pagando caro pelo crédito, enquanto o Banco Central pressiona instituições a reduzir os juros
Uma conversa em qualquer setor de recuperação de crédito num banco revela histórias espantosas sobre os efeitos da insegurança jurídica nos empréstimos e, por consequência, na economia do País. Há desde pessoas inadimplentes que levam seus carros a outros municípios – e conseguem, assim, evitar que eles sejam tomados pelo financiador – até quem saiba operar com a morosidade da Justiça, na hora de oferecer garantias que já contam em perder quando vão tomar o empréstimo.
Essa dificuldade em recuperar os bens dados como garantia é uma das justificativas apresentadas pelos bancos na principal discussão do setor neste ano: por que é impossível reduzir o spread (a diferença entre o custo de captação do dinheiro e o valor cobrado de pessoas físicas e empresas) bancário no Brasil?
Na teoria, com a redução da taxa básica da economia (Selic), de 13,75% ao ano para 6,5% entre janeiro de 2017 e junho de 2018, o spread deveria ter caminhado na mesma direção. Na prática, ele continua entre os mais altos do mundo. Com uma agravante: a rentabilidade dos bancos continua aumentando. Levantamento da Economática mostra que os bancos tiveram retorno sobre seu patrimônio líquido de 13,6% em 2017, ante 10,4% do ano anterior. O Itaú obteve a maior rentabilidade, de 18,7%.
No exemplo mais extremo, no cheque especial e no cartão de crédito, são cobrados perto de 300% de juros ao ano. Os bancos dizem que é praticamente impossível um correntista pagar esse porcentual total, já que a maioria das pessoas entra no cheque especial por poucos dias. Porém, Relatório do Banco Central revela que o spread médio bancário é alto, quando comparado à Selic: 33,7 ponto porcentual (pp). Para os consumidores pessoas físicas, a diferença chega a 49 pp. No acumulado de janeiro a março, o spread chegou a subir (1,9 pp), mesmo com o pequeno recuo na inadimplência de 0,1 pp, item apontado como fator importante nos cálculos dos bancos para definir o juro.
Tão grande quanto o custo do crédito no Brasil é o pacote de motivos citados que explicam, em maior ou menor grau, o descasamento entre redução da Selic e do juro bancário. Além da inadimplência, falta de acesso a informação, cunha fiscal, crédito direcionado, concentração bancária e compulsório são os principais pontos destacados por especialistas. Não há consenso sobre a hierarquia desses fatores, tampouco uniformidade em relação a alternativas para reduzir o juro a patamares mais civilizados.
Segundo o UBS, se os bancos acompanhassem a queda da taxa básica e da inadimplência, os juros ao consumidor seriam 20 pontos porcentuais menores
“O risco do não recebimento, associado ao custo alto de recuperação dos valores, tem impacto elevado”, diz Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos, chamando de “patologia no Brasil” o comportamento pró-devedor do Judiciário. “A recuperação de ativos de crédito aqui é baixa, em torno de 16%, enquanto nos Estados Unidos chega a 80%”, diz ela. “O banco, além de emprestar menos, cobra mais de todos os clientes.”
Zeina cita também a política de crédito direcionado – como a destinação de recursos da caderneta de poupança para o crédito imobiliário, e do FAT para o BNDES. “São linhas com custo de captação mais barato, à custa da sociedade, sendo que parte do subsídio concedido é repassada para o crédito livre”, afirma. “O direcionamento de crédito implica, muitas vezes, alocar recursos em projetos menos rentáveis.”
A Febraban, entidade que representa os bancos, fez um estudo em parceria com a consultoria Accenture, detalhando os custos nas operações de crédito. Mais da metade do spread no Brasil (50,3%) é fruto dos custos com inadimplência (4,5% no Brasil, ante 1,8% em países emergentes), custos financeiros (8,8% x 3,8%), despesas com pessoal (4,5% x 3,4%) e tributário (33% x 22%). “Segundo dados do Banco Central (BC), 77% do spread bancário é explicado pelos custos da intermediação financeira, que incluem também depósitos compulsórios e outros elementos do sistema de regulação, bem mais altos no Brasil que em países emergentes relevantes, como Chile e Turquia”, resume a entidade. O “viés anticredor” e a lentidão da Justiça compõem os argumentos da Febraban. Nos casos de falência, a taxa de recuperação de garantias é de menos de 16%, comparada com uma média de 69%.
Sobre a principal crítica feita aos bancos, de não repasse integral da queda da Selic para os juros finais, a Febraban diz que ela “afeta o spread apenas indiretamente e no médio prazo”, na medida em que é um dos fatores que contribuem para reduzir a inadimplência. A Febraban afirma que os bancos têm aproveitado a queda da Selic para reduzir o custo do crédito: o juro médio cobrado em empréstimos para pessoas físicas com recursos livres caiu 17,1 pontos porcentuais de outubro de 2016 a março de 2018. Nesse mesmo período, a Selic recuou 7,75 pontos porcentuais. “A taxa de juros média era de 74,3% ao ano em outubro de 2016, passando para 57,2% em março último.”
Mesmo com custo alto de inadimplência e tributos, os juros finais cobrados poderiam ter refletido em maior magnitude o recuo da Selic, aponta estudo do banco UBS. Se tivesse respondido aos cortes na taxa básica e ao recuo da inadimplência, como no passado, a taxa média dos empréstimos ao consumidor seria hoje de 37,6% ao ano, 20 pontos porcentuais abaixo dos 57% efetivamente cobrados. O descolamento ocorreu, segundo o UBS, a partir de 2014 quando o País entrou em recessão e duas variáveis cruciais — calotes e Selic — deixaram de explicar o comportamento das taxas ao consumidor. “O que explica essa mudança de comportamento é uma cautela maior dos bancos, na fase pós-crise”, diz Tony Volpon, economista-chefe do UBS e ex-diretor do Banco Central. O estudo compara o comportamento do juro em relação à variação da Selic até 2014 e depois entre 2015 e 2018, utilizando, além da taxa básica, inadimplência e ROE (retorno sobre patrimônio) como variáveis. Quando o UBS inclui variáveis de risco, como o CDS (Credit Default Swap), a diferença cai, mas ainda é alta. Nesse caso, o juro ao consumidor pessoa física poderia ser ao redor de 43% (e não 57%).
“O juro básico recuou a 6,5%, mas todos os demais fatores ficaram praticamente inalterados” – Rina Pereira, do Ibmec
Além da maior cautela dos bancos no pós-crise, a concentração bancária pode explicar o juro alto. “Esse não foi objeto do estudo, mas até cremos que sim [concentração]”, diz Volpon, ressaltando também o peso da carga fiscal no crédito. “De qualquer forma, a agenda BC+, ao sugerir como objetivo crédito mais barato, pode acabar tomando medidas que elevem a competição, sobretudo via fintechs.”
A agenda BC+ visa dar transparência a uma série de iniciativas da entidade para estimular o crédito e a competição. Há um ano, o BC proibiu clientes de entrar no rotativo do cartão de crédito por mais de um mês, sem que os juros caíssem. Agora, tenta novamente, ao acabar com o porcentual mínimo de 15% da fatura para pagar – bancos ficam livres para definir o porcentual – e proibir juros diferentes para adimplentes e inadimplentes, medidas que entraram em vigor em junho.
A concentração bancária no País tem peso relevante na manutenção dos juros altos, segundo Rina Pereira, professora do Instituto Brasil de Mercado de Capitais (Ibmec). “Claro que o fato de apenas quatro bancos terem perto de 80% do mercado de crédito pesa e muito”, diz. Para ela, o Cadastro Positivo que está sendo revisto pode ajudar. No fim de 2017, Itaú, Bradesco, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal detinham 78,5% do mercado de crédito e com 76,35% dos depósitos de correntistas, segundo o Banco Central. “Tudo que for feito para facilitar o acesso à informação sobre o consumidor estimula a competição e o volume de crédito, com reflexo na taxa”, diz Rina, lembrando que o primeiro modelo de Cadastro Positivo, de 2011, não tinha informações consolidadas e teve baixa adesão.
Ela faz coro em relação ao peso menor da Selic no spread bancário. “É pequeno quando olhamos para inadimplência, impostos e custos administrativos”, diz. “O juro recuou a 6,5%, mas todos os demais fatores ficaram praticamente inalterados.” Para ela, redução do spread, só no longo prazo. “Endividado, o governo não tem como cortar impostos e a concentração só cai com o tempo.”
De acordo com Roberto Luis Troster, coordenador do curso de Banking da Fipe USP e ex-economista-chefe da Febraban, a variável mais importante nessa conta é a tributação. Entre elas, a cobrança do IOF nas operações de crédito. “Mesmo que a Selic fosse zero e o banco cobrasse zero de juros, o consumidor teria de pagar pelo menos 7,8% de IOF, que é descontado do financiamento”, diz, ressaltando que ainda há o custo de captação de 6,5%, o compulsório de 34% (para emprestar R$ 660, banco precisa captar R$ 1.000), inadimplência, margem operacional e custos administrativos. “São cinco tributos explícitos, IOF, IR, PIS, Cofins e CSLL, sobre quatro bases diferentes, juros, principal, prazos e lucro e outros tributos não explícitos, como os compulsórios e os créditos tributários, que têm um efeito perverso na eficiência da intermediação”, afirma Troster. Ele propõe, entre outras medidas, zerar o IOF para operações de crédito, acabar com o PIS-Cofins para instituições financeiras e com os compulsórios. “Se mexer com tributação, com compulsório você altera com toda a dinâmica, o juro cai, o volume de crédito aumenta, a inadimplência reduz.”
Nos EUA, o cadastro positivo permitiu a redução da inadimplência em 45% e aumentou de 40% para 75% a aprovação de crédito, diz a Febraban
A Febraban apresentou uma agenda de medidas ao BC, ao Ministério da Fazenda e ao Congresso Nacional que, segundo a entidade, poderá contribuir para a redução do spread. Entre as medidas estão a ampliação do uso efetivo de informações positivas para análises de crédito; a eliminação de impostos na intermediação financeira; a ampliação da oferta de produtos de captação de longo prazo e a redução dos riscos trabalhistas e legais que afetam os custos operacionais. A maior parte dessas medidas depende de leis a serem aprovadas pelo Congresso. Algumas já estão tramitando, como as mudanças no Cadastro Positivo.
Segundo estudo da Febraban, nos Estados Unidos, a introdução de um cadastro positivo permitiu a redução de 45% da inadimplência e aumento de 40% para 75% na taxa de aprovação de crédito. Volpon, do UBS, faz coro: “Sem dúvida, um credit score mais eficiente ajuda a reduzir o juro”, diz ele. “Faltam informações completas para separar os bons dos maus pagadores.”
O custo do dinheiro
Peso de encargos e tributos no Brasil supera o de outros países
INADIMPLÊNCIA
Provisão para Devedores Duvidosos (PDD)
4,5% BRASIL
1,8% EMERGENTES
0,4% DESENVOLVIDOS
FINANCEIROS
Despesas com juros
8,8% BRASIL
3,8% EMERGENTES
1,1% DESENVOLVIDOS
OPERACIONAL
Despesas com pessoal/administrativo
4,5% BRASIL
3,4% EMERGENTES
2% DESENVOLVIDOS
TRIBUTÁRIO
33% BRASIL
22% EMERGENTES
32% DESENVOLVIDOS
CRÉDITO DIFÍCIL DE RECUPERAR
Taxa de recuperação de garantias (% do valor) em 2016
88.6% REINO UNIDO
84,5% COREIA
84,4% ALEMANHA
82.4% AUSTRÁLIA
78,6% EUA
69,4% COLÔMBIA
69,1% MÉXICO
38.6% RÚSSIA
18,5% TURQUIA
15,8% BRASIL
Fonte: Febraban/Accenture